Discos que parecem que só eu gosto existem vários. Todo mundo tem o seu repertório individual. Mas tem casos que eu não consigo entender. Um deles é o álbum Hot Space, do Queen. Para mim, um dos cinco melhores discos já lançados na história do rock, e que é massacrado pelos fãs do Queen, os não fãs e até pelo próprio Queen. Por que? Nunca consegui encontrar a resposta.
Para começar, Hot Space foi lançado em 1982, logo após o álbum Flash Gordon (1981) e o hiper-idolatrado The Game (1980). A sonoridade é uma sequência do que estava sendo feito pela banda, já que desde The Game o grupo começou a utilizar sintetizadores (lembrando que o Queen adorava acrescentar nos encartes de seus álbuns a frase "no synths", e Jazz, de 1978, foi o último a ter os méritos para ostentar essa frase), que foram experimentados ao máximo na trilha de Flash Gordon, e que em Hot Space foram utilizados para dar uma sonoridade ainda mais leve ao pesado rock que o grupo fez no início da carreira, e que com o passar dos anos se transformaria em um pop fácil e pegajoso, estourando pelo planeta com o álbum The Works (1984), lançado exatamente depois de Hot Space.
E aí está o fato: The Game e The Works são álbuns pop de ótimo gosto, com canções que marcaram como "Another One Bites the Dust", "Play the Game", "Radio Ga Ga" e "I Want to Break Free" (isso só para citar algumas), e de novo pergunto, por que o preconceito com Hot Space se o pop dos anteriores também está presente neste?
Conhecendo um pouco a história, talvez possamos achar uma resposta. Em 1981, o Queen partiu para sua 1a turnê realmente mundial, promovendo o álbum Flash Gordon e passando pelo Japão, México e principalmente Argentina e Brasil. Os shows na América do Sul ficaram marcados por apresentações lotadas e muitos problemas.
Em março de 1981, o Queen desembarcou na Argentina para uma série de cinco shows, e logo na chegada, foram barrados pela polícia Argentina, pois as credenciais do grupo mostravam duas mulheres com os seios de fora, o que causou controvérsias entre o grupo e as leis antiporrnográficas da ditadura argentina. Para conseguir entrar no país, a equipe de produção do Queen necessitou passar uma caneta preta em cima de todos os seios das credenciais.
Já em frente ao estádio José Amalfitani, do Velez Sarsfield, onde os shows foram realizados, milhares e milhares de pessoas se amontoaram durante dias para poder presenciar os shows, causando mais tumultos e desconfortos entre a polícia local e a banda.
Para piorar a situação, o Queen esteve envolvido com diversos compromissos extra-palco: sessão de fotos ao lado de Maradona e jantar com o presidente, o General Roberto Eduardo Viola, que foi prontamente negado por Roger Taylor, alegando ser contra as políticas do general para com o povo argentino. O resto do grupo, a saber Freddie Mercury, Brian May e John Deacon, participaram do jantar, o que gerou uma sequência de atritos entre os membros da banda afetando direto a gravação de Hot Space.
Seguindo viagem para o Brasil, o Queen ficou 36 horas "hospedado" no aeroporto esperando a liberação do equipamento de som. Com apenas um dia para montar o palco e construir o set list da primeira apresentação da banda no estádio Morumbi, Mercury resolveu passear por São Paulo, deixando o resto do Queen p... da vida. Apesar de tudo, no palco o grupo fluía como água, e a apresentação para os 131 mil presentes no Morumbi é considerada por muitos uma das melhores da carreira da banda.
Com o término da turnê, o grupo lançou a canção-manifesto "Under Pressure" em um single que vendeu milhões de cópias. Com co-autoria de David Bowie, essa faixa bate de frente contra a política mundial do mundo naquela época, criticando principalmente a ditadura que envolvia os países da América do Sul. Não demorou para "Under Pressure" ser banida das rádios argentinas, e ao mesmo tempo que começava a Guerra das Malvinas entre Inglaterra e nossos hermanos, o Queen (assim como várias outras bandas britânicas) estavam proibidos de voltar a pisar em solo argentino durante todo o tempo que a guerra durasse.
Porém, no resto do planeta, "Under Pressure" estourou, e todos esperavam que o próximo álbum a ser lançado mantivesse a linha da sonoridade de "Under Pressure", que será discutida daqui a pouco.
Seguiram-se ainda mais dois singles: "Body Language" e "Las Palabras de Amor", outra que os argentinos adoraram, principalmente pelas frases em espanhol, e que foi banida rapidamente de todas as lojas argentinas, com o single sendo despedaçado em praça pública, e finalmente chegava às lojas Hot Space.
Gravado entre muitas discussões, principalmente entre Mercury (no auge da sua descoberta sexual) e May.
Logo após o lançamento de Hot Space, o Queen se separava por tempo indeterminado, já que ninguém aguentava mais os chiliques da dupla citada (Brian e Freddie) e principalmente, com quase dez anos de imensas turnês, sem nenhum descanso, não tinha como ficarem mais tempo juntos. Taylor partiu para tirar férias na Escócia, onde um dia saiu tocando campainhas pela cidade e resolveu presentear a todos os que soubessem quem ele era, o que não foi feliz, pois ninguém o conhecia naquela região. Deacon juntou-se a família, enquanto May trabalhou ao lado de Eddie Van Halen no projeto Star Fleet. Já Mercury caiu na farra e na gandaia durante alguns meses, enquanto Hot Space afundava-se em números de vendas ridículas para um LP do Queen.
========================================================
CONTEÚDO, ESTILO
CONTEÚDO, ESTILO
O QUE ESTÁ PRESENTE EM HOT SPACE
Claramente, o Queen escolheu repertório especial para cada lado do vinil. Lado A preserva e destaca canções sensuais e dançantes, com pop típico dos anos 80 e inovando no uso de sintetizadores. Já o lado B é mais Queen, destacando a guitarra de May e as linhas melódicas marcantes do Queen a partir do álbum A Night at the Opera (1975).
O disco abre com o baixo de John Deacon mandando o riff de "Staying Power", onde sintetizadores imitando metais fazem intervenções para então Mercury começar a cantar sobre um andamento dançante e bem oitentista, com um ótimo solo dos sintetizadores imitando os metais e com um arranjo dos vocais duelando com os sintetizadores muito bom. Essa faixa já assusta quem está acostumado com o som tradicional do Queen ou o rock que a banda fazia no início de carreira, mas é uma excelente faixa pop, perfeita para a época em que bandas como Depeche Mode, Erasure, Pet Shop Boys, New Order, Tears For Fears entre outras estavam engatinhando ou nem existiam ainda.
"Dancer", tem o baixão de John Deacon novamente na frente do ouvinte, e Mercury cantando em uma linha Michael Jackson que não tem como não dançar. O refrão é marcante, e andamento similar a "Another
One Bites The Dust", mas com mais guitarras, inclusive com May solando por diversas vezes (para quem diz que o álbum não tem solos de guitarra) e bem mais sensual, batendo a canção famosa, na minha opinião, logo no 1o round da luta entre as duas.
Back Chat é uma fantástica canção pop, com andamento sensacional de Taylor, utilizando a bateria eletrônica e criado espaço perfeito para o fantástico riff de May, com Mercury cantando sobre a melodia do riff. Oitentista pacas, chupada por diversas bandas como as citadas anteriormente, com mais um ótimo solo de May, é trilha perfeita para uma noitada de sábado. Mercury canta muito aqui, e ainda não é a melhor apresentação do álbum.
A sensual "Body Language", (com uma letra bastante provocativa) é outra para ser confrontada com uma do álbum The Game, "Don't Try Suicide". Se na faixa de The Game, Mercury canta sobre um andamento simples feito por baixo e batidas de palmas, com uma participação tímida de Taylor, tendo no refrão o ponto alto entoando o nome da faixa, e com uma curta sessão mais agitada com o solo de May, a faixa de Hot Space mantém uma linha similar, porém ainda melhor, começando com o hipnotizante riff de Deacon acompanhado pela bateria. Mercury começa a cantar enquanto palmas fazem pequenas intervenções para cada palavra. O refrão, cantado por todos, é recheado de efeitos que já haviam sido apresentados na trilha de Flash Gordon (1981). A faixa vai ganhando corpo, e o refrão novamente é repetido, chegando a uma sessão apenas com estalos de dedos, onde o nome da canção é repetido na frase "Look at me I gotta case of body language". Nada mais que o puro Queen de tantas outras canções.
O lado A encerra-se com "Action This Day", que foge da característica das demais faixas do Lado A, com um riff mais pesado, apesar do andamento "quadrado", alternando entre vocais de Taylor e Mercury e com mais um bom refrão, além de uma curta sessão onde os sintetizadores comandam um belo tema que leva ao curto solo dos sintetizadores em uma sequência de algumas faixas de Flash Gordon.
O lado B é, na minha opinião, ainda melhor. A faixa que o abre, "Put Out the Fire", já é uma sonzera na linha de "Rock It" ou "Need Your Love Tonight" (ambas do The Game), porém com muito mais pegada, onde o grudentíssimo refrão hardiano destaca o peso da guitarra de May, em uma ótima faixa que, como citado no início do texto, não tem nada a ver com o lado Life is Real (song for Lennon) - Depois, Mercury assume o piano na linda balada em homenagem a John Lennon, Para quem gosta de "Save Me", "Play The Game" ou ainda "It's A Hard Life", essa canção está ainda um nível acima, pois a linha vocal de Mercury está emotivamente mais forte do que as citadas, o belo solo de May, mesclando guitarra e violão, o arranjo feito entre a guitarra e o piano, com o leve andamento de Taylor e Deacon, além de uma das letras mais bonitas escritas por Mercury (quem nunca pensou que "Life is cruel life is a bitch", joguem a primeira pedra), fazem dessa uma das minhas preferidas do LP.
Calling All Girls - rock de com um andamento sensacional, na linha das bandas de surf rock, onde os riffs de May chamam a atenção, apresentam um dos refrões mais grudentos de uma letra simples, entoado o poder do amor. Levada do baixo de Deacon é principal destaque da faixa, bem como os efeitos da guitarra de May durante toda a execução.
Las Palabras de Amor (The Words of Love) - A canção mantém o clima leve em uma linda balada que possui um sentimento forte, a começar pela bela introdução com teclados, baixo, violão e bateria, trazendo a voz de Mercury em outra linda letra, com o refrão mesclando frases em espanhol e em inglês, assim como o próprio Queen já havia feito em "Teo Torriatle (Let Us Cling Together)", do álbum A Day at the Races (1976), porém mesclando japonês com inglês.
Cool Cat - O Queen retoma a sensualidade naquela que para mim é a melhor faixa do álbum. O que? Esse cara tá louco? A melhor é Under Pressure. Calma! "Cool Cat" é diferente de tudo o que está no álbum. Carregada de sensualidade, essa faixa apresenta uma das melhores performances vocais de Mercury, cantando em agudo muito alto, quase falsete, e arrepiando até a unha do pé. Baixo e bateria puxam o riff da guitarra, e ai Mercury começa a cantar em ótimo soul, e a canção vai se embalando por si mesma, com a adição sutil de teclados . Os quatro cantam o nome da canção enquanto Mercury esbanja agudos soberbos. O que Mercury faz com a voz nessa faixa eu não ouvi em nenhuma outra do Queen (e olha que eu, modéstia a parte, conheço a obra do Queen de trás para a frente, da esquerda para a direita), a não ser em alguns segundos de "Under Pressure", sem nenhum auxílio como os utilizados para as gravações de Innuendo, Miracle e posteriormente Made in Heaven. É o melhor registro de Mercury no auge da carreira. E para os "ousados", sigam o conselho: rodem essa canção e, carinhosamente, peça para sua esposa/namorada fazer um strip-tease. A trilha vai encaixar perfeitamente para o objetivo a ser alcançado posteriormente.
Under Pressure - Hot Space se encerra com "Under Pressure". Só a participação de David Bowie já faz dessa faixa um clássico, mas ela tem seus méritos por si mesma. O riff de Deacon, as intervenções de piano, acompanhamento de estalos de dedos, apresentam os acordes dedilhados da guitarra seguido pelas vocalizações de Mercury. Bowie e Mercury passam a cantar juntos, e então alternam frases, levando a uma parte mais pesada, onde Bowie canta as duas primeiras frases e Mercury as duas últimas. O andamento dos estalos retorna, e Mercury solta os agudos que citei em "Cool Cat", fazendo então mais vocalizações. Bowie canta frases enquanto Mercury grava na história mais vocalizações, e o tema pesado retorna. Então, somente com os estalos e alguns teclados, Bowie e Mercury cantam juntos, e Mercury solta mais agudos, arrepiantes, enquanto Bowie canta "Love, Love", e o encerramento, pesado, é novamente arrepiante, com Mercury cantando muito, e a entrada de Bowie, entoando uma das estrofes mais lindas do mundo do rock "Pois o amor é uma palavra tão fora de moda E o amor te desafia a se importar com as pessoas no limite da noite E o amor desafia você a mudar nosso modo de nos preocupar com nós mesmos Esta é nossa última dança, Esta é nossa última dança Isto somos nós mesmos", emociona até um surdo.
Under Pressure encerra-se apenas com os estalos e o riff de Deacon, e não precisava mais nada, o estrago já foi feito.
David Bowie e Freddie Mercury discutindo quem é mais macho: "Você! Não, você!"
"Under Pressure" é considerada por muitos a única faixa boa de Hot Space, e esse é o fato, "Under Pressure" é diferente das demais faixas por ter sido concebida antes das complicadas gravações do álbum. Uma pessoa que ouve essa faixa realmente só pode esperar algo igual em todo o álbum, mas a ideia de "Under Pressure" ser uma canção de protesto não é o tema de Hot Space, que é um álbum extremamente sensual e dançante no lado A e rock'n'roll no lado B. Se "Under Pressure" fosse colocada em A Kind of Magic por exemplo, certamente as pessoas ouviriam Hot Space com outra atenção.
Mas, na minha modesta opinião (que com certeza não é a verdadeira e nem tão pouco a certa ou errada), 99% das pessoas que criticam Hot Space vão na onda do que já ouviram falar do álbum ou de apenas uma audição procurando por algo na linha do clássico de Bowie e Mercury. Com certeza, se essas pessoas gostam de The Game e The Works, ao ouvirem com atenção Hot Space verão que as mesmas linhas melódicas, os mesmos sintetizadores e a mesma forma de criar as canções estão presentes em Hot Space, só que adaptadas para o momento que a banda passava, que acabou refletindo em um dos melhores e mais injustiçados álbuns da história do Queen.
Nenhum comentário:
Postar um comentário